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(1) Podemos encarar o inconsciente como um produto da consciência, ao jeito da psicanálise, (2) podemos desvalorizar o fenómeno e classificá‑lo apenas como o “não‑consciente”, ao jeito da psicologia cognitiva, (3) ou podemos ser fiéis ao fenómeno e percebermos que ele antecede a consciência, sendo do inconsciente que a consciência emerge.
Este é o modo da psicologia analítica e de grande parte dos estudos em neurociência. E é o modo, no meu entender, mais fecundo de o encararmos.
O inconsciente é, verdadeiramente, uma realidade autónoma, que porta em si uma vontade que vai para além da vontade consciente do ego.
O grande William James, do qual neurocientistas como António Damásio se afirmam seguidores, há muito que afirmava a natureza dividida da nossa psique, e de não sermos senhores plenos das nossas vontades, que são múltiplas e muitas vezes conflitantes. No seu monumental tratado de psicologia (Os Princípios da Psicologia) examinou em profundidade esta realidade do inconsciente e, em particular, na sua obra de 1902: As Variedades da Experiência Religiosa, que tem um subtítulo interessantíssimo: Um estudo sobre a Natureza Humana.
Aliás, é difícil encontrar um investigador ou psiquiatra do século XIX que não reconheça a atividade cerebral inconsciente, entendendo‑a não só como real mas da maior importância. Inclusivamente Fechner e Wundt chegaram a utilizar o conceito nas suas versões de psicologia experimental.
Mas ninguém foi tão longe quanto Jung ao afirmar que para além do inconsciente recalcado, ao jeito de Freud e que é uma realidade de cariz ontogenética, existiam estratos mais profundos da psique, de cariz filogenético, os quais seriam os repositórios dos arquétipos.
Arquétipos que não são realidades transcendentes, note‑se; bem pelo contrário. Por arquétipos, Jung se refere aos remanescentes do nosso passado evolutivo, como está bem explícito na obra de Jung O eu e o Inconsciente, por exemplo.
Os arquétipos, por vezes denominados de instintos por Jung, são as raízes filogenéticas, isto é, são mecanismos biológicos muito antigos, evolutivamente muito antigos, que se encontram subjacentes ao comportamento humano, e que se vão atualizando dinamicamente nos diversos contextos culturais.
Ou seja, observamos que da psique como um todo emerge uma capacidade de processamento da informação imensa, que ultrapassa a mera computação consciente. O que significa que na experiência entre o sujeito e o objeto, que é uma experiência de conhecimento, temos de entender um terceiro elemento que proporciona a mediação dos dois, um intermediário que, quanto mais não seja, trata‑se da base material na qual nos sustentamos e que é inconsciente: refiro‑me à matéria da qual somos feitos, que serve de a priori para a compreensão do que nos acontece, e que também podemos de denominar de inconsciente.
Portanto, a consciência trabalha sobre uma base que é subjetivamente inconsciente, ainda que em parte passível de se objetivar. Mas nem tudo se pode objetivar. Por isso, há dados que na experiência de conhecimento se podem objetivar mais ou menos, o que nos mostra que o inconsciente não é totalmente montado como se de uma linguagem se tratasse, ao modo de Lacan (e na senda de Sausurre), mas sim de uma forma de comunicação mais representativa e simbólica, ou seja, bem mais primitiva e afetiva.
É dessa forma que os produtos do inconsciente, deste inconsciente cognitivo, se manifestam e revelam extremamente sábios para quem tiver a capacidade de perceber a sua linguagem arquetípica; arquetípica, ou seja ‘antiga’, muito antiga como dizíamos, palavra que provém do grego: “arqué”, e de onde provêm outras palavras como arqueologia. Em certa medida podemos dizer que Jung é um arqueólogo da psique humana.
Escutemos a próprias palavras de Jung:
"Os conteúdos do inconsciente coletivo são, não só os resíduos de modos arcaicos e funções especificamente humanas, como também os resíduos das funções da sucessão de antepassados animais do homem, cuja duração foi infinitamente maior do que a época relativamente curta do existir especificamente humano (…). Tais resíduos, ou (…) engramas, quando ativos, têm a propriedade não só de interromper o desenvolvimento, como também de fazê‑lo regredir, enquanto não estiver consumida toda a energia ativada pelo inconsciente coletivo” (C.G. Jung, CW, vol. VII, §159).
Isto por um lado, por outro, a totalidade da psique mostra-se maior que o inconsciente coletivo, e tanto assim é que, pela consciência, até posso ir contra as leis da matéria inconsciente. Com efeito, pela consciência temos a capacidade de atuar na parte que é inconsciente; o grande risco em que incorremos é de negar ou negligenciar a base inconsciente ou corpórea na qual nos sustentamos e, com isso, negarmos os princípios fundamentais do vivo e da vida. Como em algumas visões, porventura de cariz religioso, se tentou ou se tenta fazer…
Este conhecimento do corpo tem sido nos últimos 300 anos bastante negligenciado e esquecido e só ultimamente tem sido alvo do interesse de muitos investigadores. É dessa forma que os sonhos, por exemplo, se manifestam de extrema importância para nós, psicólogos, pois manifestam‑se como portas para esse mundo profundo e suas vontades.
Como tudo no nosso organismo, e em biologia, atuam por intermédio de um mecanismo homeostático em que um viés da consciência é compensado por uma visão oposta ou complementar do inconsciente, na forma de sonhos ou sintomas.
É nesta medida que podemos dizer que a psique já não pode mais ser considerada como uma caixa negra, pois a lógica da psique se oferece a quem tiver as ferramentas suficientemente adequadas para a entender. Para mais, como Jung afirmava, os sonhos não são vontades mascaradas, mas testemunhos verdadeiros e suficientemente transparentes da psique profunda.
Em suma, o inconsciente é um facto e porta em si arquétipos muito provavelmente coligidos na forma de códigos neuronais.
A biologia dos códigos, defendida por académicos de renome como o embriologista Marcello Barbieri, é uma versão muito recente que demonstra empiricamente a existência de múltiplos e verdadeiros códigos no nosso organismo. Não nos limitamos ao código genético, mas somos detentores de uma multiplicidade de códigos dos quais os arquétipos fazem parte.
11-04-2020
Autor: João Carlos Major
Psicólogo Clinico e da Saúde especialista em Psicologia Analítica
Fundador da Academia Internacional de Psicologia Analítica
Co-fundador do JungLab
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